Rachas: em dois meses de 2023, Pará teve 71 corridas ilegais; é mais do que todo o ano de 2021
Em 2022, foram 100 disputas ilegais registradas, logo, no primeiro bimestre, o estado teve mais de 70% de todos os crimes cometidos no ano passado
O Pará fechou o ano de 2022 com 100 casos de rachas ou pegas, como são conhecidas, popularmente, as corridas não autorizadas em vias públicas. Apenas entre janeiro e fevereiro deste ano, já foram 71 casos. O número representa mais de 70% do total de registros do ano passado e supera o total de todo o ano de 2021, quando foram contabilizadas 69 ocorrências. O assunto das disputas criminosas voltou à tona após, na noite do último dia 18 de março, quando grupos de motociclistas praticarem manobras ilegais, do ponto de vista do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), no centro de Belém. Desde então, quem se viu forçado a se acostumar com o barulho e insegurança do trânsito — que pode resultar em acidentes graves ou fatais —, viu uma oportunidade de chamar atenção novamente para os riscos da atividade clandestina.
Por nota, o Departamento de Trânsito do Estado (Detran) informou que “…realiza operações de fiscalização de forma integrada com os demais órgãos de segurança para combater esse tipo de infração. A prática de direção perigosa em Belém é coibida com ações nas vias de grande circulação. Esse tipo de conduta pode provocar acidentes graves envolvendo outros veículos que circulam no trecho onde ocorre esse tipo de crime”. Sem denúncias ou flagrantes, o número de ocorrências real pode ser muito superior.
“De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, quem publicar, em qualquer meio de divulgação, vídeo ou foto que fere alguma lei de trânsito ou práticas que coloquem em risco a própria vida ou de terceiros, será punido com infração gravíssima. Além disso, segundo o CTB, a prática de disputa de corrida é considerada infração grave, com penalidade de multa, além da suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo. O Detran ainda explica que, em geral, são pessoas com veículos irregulares ou que possuem histórico de crime”, diz a nota do órgão estadual. Ainda assim, fotos e vídeos dessas corridas vão parar nas redes.
Para os corredores clandestinos, pistas mais longas, com certo espaço e poucos semáforos são as ideais para a prática dos rachas. Por isso, a avenida Júlio César costuma ser palco dessas disputas. Levantamentos da Redação Integrada de O Liberal mostram que os “eventos” — organizados em redes sociais e aplicativos de mensagens — começam às quartas-feiras e só param na madrugada de domingo. A mobilização começa depois de 1h, quando a fiscalização de trânsito acaba e até a movimentação da Polícia Militar diminui.
Há quem prefira dias mais calmos para ter mais “segurança”. Outros preferem pistas mais arriscadas, com mais semáforos e mais trânsito, no meio da semana. A presença ou não de radares não importa. Com isso, outros locais que costumam ter pegas são a avenida Duque de Caxias, a avenida João Paulo II, a avenida Almirante Barroso, a avenida Pedro Álvares Cabral, a avenida Augusto Montenegro, a avenida Visconde de Souza Franco (Doca) e a rodovia BR-316.
Trabalhadores da noite dão testemunhos das corridas ilegais
Quem trabalha na noite e madrugada adentro, costuma ver com mais frequência a movimentação dos rachas. Numa das madrugadas de apuração da Redação Integrada de O Liberal, por volta de 1h20, uma movimentação suspeita foi flagrada perto de um posto de combustíveis na avenida Júlio César. Carros isolados, geralmente em duplas, faziam barulho, disputando a potência dos motores pelos sons. E então partiam em alta velocidade.
Por volta de 3h, o movimento se intensificou. Muitas pessoas estavam às margens da pista, próximas de seus carros, sendo praticamente todos homens. Mais uma dupla de motoristas disputou um pega. Eles foram nos carros, a cerca de 800 metros do posto até um retorno mais próximo da Almirante Barroso e então voltaram na disputa em alta velocidade, fazendo muito barulho e desviando de outros veículos no caminho. Com poucas casas e potenciais testemunhas, essa área se torna muito “confortável” para essas atividades ilegais. Até a saída da reportagem, algumas viaturas da PM foram vistas, mas nenhuma exatamente no momento das corridas. Essas ocorrências, possivelmente, não estão nas estatísticas do Detran-PA.
Na Doca, um taxista e um frentista de um posto de combustíveis — ambos com identidades preservadas — informaram que faz algum tempo que a avenida Visconde de Souza Franco deixou de ser um dos palcos preferenciais de rachas, como era antigamente. Ambos disseram, com base em relatos ouvidos e experiência de trabalho, que a concentração hoje é na Júlio César. Assustados com as perguntas, respondiam rápido e de forma evasiva.
“Quem é profissional de trânsito e vê essas coisas, fica até com medo. Já muitos quase-acidentes, com gente tirando fino de outro carro, em velocidades absurdas, fazendo barulho… eu acho que é pra se aparecer. É diversão de playboy, que tem esses carros caros, importados ou tem grana para mexer em carros antigos e reformar só para essas coisas. Eu moro perto da João Paulo II e confesso que quando volto mais tarde para casa, eu volto com medo de acabar passando no meio de um negócio desses [racha]“, contou um motorista de aplicativo que trabalha à noite e não quis se identificar.
“Basta um deslize e ir para o inferno. Mas vai continuar tendo, independente da polícia”, diz corredor
O último acidente de Guilherme — nome fictício para ocultar a identidade do personagem — ocorreu há poucos meses e ele não sabe explicar o porquê de já ter voltado a correr. “Corremos alguns riscos e, às vezes, a brincadeira sai cara. Mas acho que isso faz parte. Ficar parado muito tempo não é bom”, conta ele, que disputa rachas em carros e motocicletas. Ultimamente, ele tem preferido as competições de duas rodas.
Guilherme e os amigos costumam viajar para disputas em outras cidades do Pará e também em outros estados. Segundo João Paulo — outro nome fictício para um entrevistado —, os “rachasbons de verdade” estão longe da avenida Júlio César, em Belém. “Esse pessoal que corre aqui é aventureiro mesmo e geralmente não faz parte de nenhuma equipe. É gente que gosta de passar rápido cantando pneu para se aparecer. A ação de verdade rola nas pistas privadas. A mais próxima é em Benevides, que está bombando agora. É a pista do momento”, diz ele.
Atualmente, é comum que motoristas de racha melhor estabelecidos financeiramente tenham sítios ou fazendas para as disputas, hiper-secretas e que exigem convites. No local citado por João Paulo, em Benevides, há até ambulância e paramédicos contratados para o caso de acidentes. João Paulo e Guilherme estão, inclusive, no processo de repaginar uma moto de trilha para uma disputa no interior do estado. Eles contam que há oficinas específicas para veículos de rachas em Belém e que o investimento mais básico para quem quer começar a correr é de R$15 mil. Quanto maior vai ficando a reputação dos mecânicos, mais caro sai o serviço.
Os motoristas em Belém estão divididos em quatro categorias: racing, automotivo, trilha e rebaixados. E as competições costumam ser divididas em arrancadas de 200, 400 e 800 metros. E Guilherme conta que quem corre de moto não é de fazer muita amizade com quem prefere os carros. “Mas eu transito por todos os meios. Não tenho preconceito. Gosto de competir e também assistir”, diz.
Há ainda os amantes de carros, um grupo mais familiar e que costuma somente assistir. Na opinião de João Paulo, coibir as corridas não é a melhor opção e nunca vai dar certo. “O primeiro racha legalizado do Brasil foi no Pará, em 1975. Hoje, temos que viajar para São Paulo ou para São Luís para competir na legalidade e despreocupado”, lamenta.
Guilherme concorda e acredita que a solução está nas proximidades da avenida Júlio César: “a pista do aeroporto Brigadeiro Protásio seria perfeita. Um quilômetro reto para sediar competições. Falta interesse e vontade de fazer mesmo”, pontua.
Se engana quem acredita que as disputas são regadas a álcool e cocaína por conta de filmes hollywoodianos. Guilherme estima que 99% dos corredores sérios só pisam no acelerador se estiverem completamente sóbrios. “Ainda mais quem corre de moto, que só precisa de um deslize para ir direto para o inferno”, conta.
Finais de semana com eventos no Hangar, centro de convenções em Belém, costumam afastar os corredores, por conta da grande movimentação. Quando a reportagem conversou com os amigos, a avenida Júlio César estava repleta de carros da polícia, uma situação cada vez mais frequente e que tem inibido disputas na avenida, segundo Guilherme.
“Mas vai continuar tendo, independente de polícia. Sempre que há um acidente mais sério ou um caso de morte ocorre, a comunidade toda fica abalada, para por um tempo. E isso também não impede de continuar. O cara que não é rico e não tem acesso às pistas de Benevides ou Castanhal, vai continuar correndo na Júlio César. É uma pena”, diz Guilherme.